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As estratégias discursivas na construção do sujeito histórico, através da literatura engajada de José Saramago, Uanhenga Xitu e Severo D’Acelino

 

Rosemere Ferreira da Silva

 

Mestranda do Programa de Pós-Graduação

em Letras e Lingüística da UFBA

 

roserosefr@zipmail.com.br

 

 

Resumo

O artigo pretende discutir as estratégias discursivas usadas para a construção do sujeito histórico em O conto da ilha desconhecida, de Saramago, Mestre Tamoda, de Uanhenga Xitu e Negra Conceição: a guerreira de Mulungu, de Severo D’Acelino. Busca ainda destacar o engajamento literário dos intelectuais citados como forma de auto-reflexividade e de desconstrução de verdades absolutas na literatura contemporânea.

Palavras-chave: Literatura Engajada, Intelectual, Identidade.

 

Abstract

The article intends to discuss the discursive strategies used to build the historical subject in: O conto da ilha desconhecida, written by Saramago, Mestre Tamoda, written by Uanhenga Xitu and Negra Conceição: the warrior of João Mulungu, written by Severo D’Acelino. Besides, the text aims to put in relevance the literary engagement related to the intellectuals in evidence as a way of auto-reflexivity and deconstruction of absolute truths in the contemporary literature.  

Key-words: Engaged Literature, Intellectual, Identity

 

 

A viagem proporcionada por José Saramago no texto intitulado: O Conto da Ilha Desconhecida remete-nos a uma interpretação metafórica de uma ilha que, embora desconhecida, é conclamada pelo personagem principal a ser conhecida por todos. O desejo de buscar a ilha desconhecida parte de uma vontade e insistência próprias de um homem, que se traduz pela imperatividade de um sujeito que busca, na sua impetuosidade e resistência diante de uma ordem social pronta para dizer não, movimentar uma coletividade na evolução para a concepção de um sujeito histórico.

 

O poder de convencimento do homem em relação aos tramites da autoridade real é tão contundente quanto sua certeza da existência da ilha. Desafiar o rei na conquista por uma embarcação acaba sendo o desafiar a si mesmo; suas convicções, seus anseios, suas projeções relativas a um futuro indefinido, mas que traz o questionamento da subalternidade do sujeito sempre justificada por uma ordem social como necessária ao domínio de ações que cerceiam a unidade do sujeito histórico.

 

O texto sugere a formação de uma identidade aberta que se percebe como possibilidade de criação de novas identidades, produzindo sujeitos capazes de articular sua própria elaboração discursiva direcionada não a uma narrativa particular, mas a uma narrativa que se pretende coletiva, que reclama por transformações sócio-culturais através da desconstrução do discurso paradigmático.

 

Acredita-se naquilo que, de fato, se tem registro no mapa, mas como registrar o desconhecido, as dúvidas, as incertezas, a fragilidade, a recusa, os questionamentos do homem enquanto sujeito histórico? Nesta perspectiva, o homem continua a ser uma das fontes mais intrigantes de investigação.

 

Saramago lança uma busca de negação sistemática dos valores em relação à cultura hegemônica através de uma tradução categoricamente pessoal, delineada para uma investidura do sujeito de possíveis descobertas, de um exercício de consciência voltado para o projeto de “buscar a si mesmo” como uma tomada de posição política que intervenha na mobilização de uma coletividade, que aos poucos se voluntaria a fazer parte das discussões voltadas para a revisão de uma política cultural.

 

Os personagens do conto não têm nomes definidos, apenas as profissões aparecem para marcar suas posições interpretativas na narrativa. Talvez a iniciativa de recorrer às funções dos personagens, transpareça no enredo como uma articulação estilística necessária ao retratar a sociedade da época. Ou seja, Saramago marca a posição hierárquica dos personagens enfatizando suas funções. Chama-nos atenção para uma ordem social necessária a qualquer sociedade que resulta de uma complexidade de relações que asseguram um sistema marcado pelas desigualdades. 

 

Não tempo determinado para encontrar o lugar desejado, assim como nós precisamos muitas vezes, sem o respeito à determinação de um tempo em específico, sair de nós mesmos para encontrar o tão almejado. O lançar-se no mar para navegar é o avançar para um objeto de desejo e realização, às vezes próximo, contudo, não enxergado, não percebido pela nossa própria incapacidade pessoal de objetividade e percepção do desconhecido. O texto traduz-se num paradoxo estranho. Nós, em alguns momentos de nossas vidas, queremos estar longe de nós mesmos para, então, enxergarmos melhor nossa natureza.

 

A mulher da limpeza é o único personagem que decide espontaneamente abandonar a vida enfadonha que levava para seguir o homem do povo. Troca sua rotina por uma viagem poética em busca de seus sonhos. A obsessão do homem em descobrir algo fora de si que traga verdades mais profundas contagia de forma simplista a sensatez da sensibilidade feminina.

 

Ocupado como sempre estava com os obséquios, o rei demorava a resposta, e não era pequeno sinal de atenção ao bem estar e felicidade do seu povo quando resolvia pedir um parecer fundamentado por escrito ao primeiro-secretário, o qual, escusado seria dizer, passava a encomenda ao segundo-secretário, este ao terceiro, sucessivamente, até chegar outra vez à mulher da limpeza, que despachava sim ou não conforme estivesse de maré. (SARAMAGO, 1998, p.6-7).

 

Saramago, de maneira engenhosa, mostra a figura do monarca como emblemática. Os obséquios eram bem vindos, enquanto as petições não eram resolvidas, eram sim postergadas e posteriormente decididas, a depender do estado de espírito da mulher da limpeza. A burocracia nos serviços sublinha um governo distante de seu maior objetivo, promover o bem estar do povo. O repúdio do rei salta aos olhos quando evita aproximar-se do homem. Uma realidade próxima do absolutismo monarca. O rei teme ao homem, ao que possivelmente ouviria como crítica, por isso, barra seu contato com a voz do povo, como um instrumento que poderia proporcionar transformação social, ainda que veiculado primeiro ao plano pessoal e posteriormente com uma inclinação perceptível ao coletivo.

 

A narrativa de Saramago está sempre em busca de uma conscientização do leitor. Como intelectual engajado nos problemas e tensões políticas de Portugal, ele conduz a problemática de uma historicidade local, em seus movimentos e contingências, investigando e recriando situações que questionam as ansiedades e esperanças humanas.

 

Quero falar ao rei, sabes que o rei não pode vir, está na porta dos obséquios, respondeu a mulher, Pois então vai dizer-lhe que não saio daqui até que ele venha, pessoalmente, saber o que quero, rematou o homem, e deitou-se ao comprido no limiar, tampando-se com a manta por causa do frio.  (apud, SARAMAGO, 1996, p.9-10).

 

Não importa o “status quo” do sujeito, sua procedência, sua identidade. A postura do homem demasiadamente lúcido de se plantar na porta do rei é uma forma de dizer “não” à infelicidade determinada e de dizer “sim” à transcendência do sujeito transformado continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpolados nos sistemas culturais que nos rodeiam.

 

Na sociedade abordada por Saramago, percebemos a construção de um “eu” que nos leva a crer, como afirma Stuart Hall:

 

A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (HALL, Stuart.,2001,p.13)

 

A literatura engajada de José Saramago, através de seu caráter discursivo, tem sido um espaço em que as localizações do sujeito e as construções de identidade afloram, permitindo uma visão clara de um projeto literárioinacabado”, sem a pretensão de propor interpretações fechadas, onde indivíduos de épocas diferentes concebiam e construíam suas identidades como sujeitos de um processo histórico crítico e revolucionário.

 

O engajamento literário de Saramago se expressa por uma tensão dialética: literatura ativa, radicada como instrumento de transformação social que insiste em desconstruir um discurso paradigmático. Os sem nome, os sem terra, os sem nada falam para questionar a construção de uma historicidade que corre pelas margens daquela legitimada como única, oficial, capaz de reprimir as ações de determinados sujeitos que apareciam na versão oficial como figuras decorativas de um âmbito social indiferente à sua existência.

 

O que o autor tenta fazer é “reparar” esta indiferença através da valorização de anônimos. Os anônimos têm poder de decisão no corpo de sua narrativa. São os anônimos que possibilitam que as grandes transformações ocorram. São eles que navegam para o desconhecido em busca de conhecimento de si e de sua própria história, de uma universalização que visa a uma experiência voltada para o nós.

 

Numa sociedade de estranhos, o sujeito histórico tem ânsia para conhecer-se e Saramago possibilita seu conhecimento através de uma expressão que aponta a metaficção historiográfica como possibilidade de introduzir o poder da palavra como reflexão de um passado histórico, pronto para ser reescrito, reformulado a partir da supressão de dicotomias, de extremos nunca antes sugeridos como conjunto.

 

A formação de uma identidade voltada para a construção de um sujeito literário não está restrita a Portugal, reflete-se também em sociedades pós-coloniais como, por exemplo, a angolana. Nestas sociedades, não quadros de referência identitária que permita ao indivíduo uma posição fixa no mundo social. Por isso, a linguagem dos escritores angolanos torna-se referência a um universo instituído para, através de uma posição política dos intelectuais engajados, resgatar valores que foram negados pelo colonialismo.

 

A identidade cultural dos países colonizados mostra-se por uma luta que não se esgota na independência política. É uma conquista contínua de uma autodeterminação a efetivar-se dentro das condições de subdesenvolvimento e de necessidade de modernização...(ABDALA JR, Benjamin, 2003 p.117-118)

 

Em Angola, a “Geração de 50” é de fundamental relevância dentro de um processo de consciência coletiva, não só pela expressão de valores, necessários à construção de uma identidade, mas também outros responsáveis por uma certa mobilização e formação política militante de novas gerações, que emergem na contingência de luta por uma autonomia cultural e política.

 

É necessário que o discurso dessa consciência se transforme na ação dele mesmo, produzindo efeitos absolutamente práticos, diferentes dos instaurados pelo sistema colonial, que sempre contribuíram para o abafamento de uma dada formação cultural interpretada pela diferença.

 

Uma das preocupações do escritor angolano Uanhenga Xitu é o homem. Por isso, percebemos algumas complexidades e contradições de pensamento social nas passagens de seu texto. O universo de sua literatura se exime da visão folclorística e exótica do negro como personagem estereotipado. O espaço desta ficção projeta o negro como sujeito de sua história, dotado de uma identidade cultural pronta para reivindicar um discurso, onde a práxis social angolana seja historicamente revista.

 

Através de sua abordagem lingüística, o texto é privilegiado e revestido de um tratamento literário que preenche os espaços do personagem com um enunciado atrelado à sua própria expressão cultural, resistente à invasão, à rejeição de um modelo português limitado à autonomia de um discurso de reconhecimento de seus próprios valores.

 

No conto Mestre Tamoda, o autor traz para o cerne da discussão a problemática instaurada pela versatilidade vocabular do “Mestre Tamoda”. Analisa, a partir do tecido verbal, os problemas lingüísticos e culturais que possivelmente foram surgindo com o contato com culturas alheias. Escolhe a língua como forma de expressão viva para retratar o não-lugar de um indivíduo que sai do seio de sua cultura, aprende novas formas de expressão e volta às raízes tentando inserir-se no grupo social de modo a desestabilizá-lo com o contraste cultural gerado.

 

Este contraste, para o escritor, passa a ser o principal motivo de questionamento da imposição cultural sofrida em Angola pela força de um colonialismo português que abafou durante muito tempo o entendimento da língua quimbundo como própria ao universo textual local. 

 

Inicialmente, a chegada de “Mestre” Tamoda refletia o novo intelectual, no meio de uma sanzala em que quase todos os seus habitantes falavam quimbundo e em casos especiais usavam o português.

 

Nas reuniões em que estivesse com seus contemporâneos bundava, sem regra, palavras caras e difíceis de serem compreendidas, mesmo por aqueles que sabiam mais do que ele e que eram portadores de algumas habilitações literárias.(SANTILLI, 1985, p. 88).

 

As “habilitações literárias” de “Mestre” Tamoda o transformavam num “etimologista”, umdicionarista”. Circulava pelo povo, mas não falava a língua do povo. A cadência de sua expressão vocabular fazia a separação nítida entre os nativos quimbundo, nunca antes expostos a uma outra cultura, a não ser a local e o Lungula Tamoda que convivera em Luanda com os filhos dos patrões, com os criados do vizinho do patrão e com um doutor recebendo influências de uma expressão lingüística diferente da sanzala.

 

O “lugar” da sanzala dá idéia de uma cultura localizada no tempo e no espaço. O autor propõe através do perfil identitário de “Mestre” Tamoda uma reavaliação deste espaço. A nossa vivência no mundo serve para aprendermos a olhar, ver, reparar as práticas coletivas e individuais que analisam as relações entre o homem e o seu grupo social e, principalmente, perceber como se articula a multiplicidade do universo da oralidade na escrita literária.

 

Os processos enunciativos de Uanhenga Xitu não estão limitados ao que alguns críticos chamam de oposição imediata de estruturas monolíticas como: negros/ brancos, rurais/ urbanos, voz/ letra. A oralidade em sua escrita literária é fundamental para os enunciados construídos. Outro aspecto relevante é a polifonia discursiva dos textos. Neste conto, em específico, o discurso polifônico imprime vozes que se aproximam e se distanciam pela diferença de representações identitárias que correm no contrafluxo de uma cultura que se pretende localizada.

 

Tamoda, na cadência das vozes e do sapato a chiar, ia marcando o ritmo com a cabeça e os ombros, muito esticado e sorridente, e lungulava como um kingungu-a-xitu. (apud, SANTILLI, 1985, p.89).

 

A convivência contraditória das línguas permite-nos perceber que a língua quimbundo é muito mais sonora em relação ao português. As expressões utilizadas na caracterização estereotípica do “Mestre” traduzem-se como um canto pela transparência de uma musicalidade típica das línguas africanas.

 

Mestre” Tamoda tinha fãs, seus fãs aprendiam com ele o significado de uma cultura exterior à local. E isto lhes permitia uma aproximação, ainda que fosse indireta, com o outro, cujos anseios, desejos e história social causavam-lhes estranhamento.

 

Mestre” Tamoda volta ao seu terreiro, ao seu espaço de origem com um status social conferido pelo uso do português, apesar da artificialidade dessa língua como oficial. Ao mesmo tempo em que alguns personagens demonstram curiosidade na articulação do português, outros tradicionalmente se colocam como defensores da pureza e conservação da língua local.

 

Uanhenga Xitu se vale da força dada pelos amigos de cárcere para inserir no seu texto a controvérsia entre a língua como instrumento de pertencimento ou não-pertencimento do indivíduo “assimilado”, não mais o mesmo, mas com uma identidade abalada pela cultura do outro.

 

“Mestre” Tamoda, o mestre do português novo. Neste sentido, a identidade, como construção narrativa, é responsável pela estabilização e localização do sujeito no grupo social. Todavia, o que gera a crise de identidade é a ação conjunta de um duplo deslocamento, a descentralização dos indivíduos tanto do seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos. “Mestre” Tamoda estava deslocado de seu meio de origem pela incursão na língua do colonizador.

 

Uanhenga Xitu coloca em evidência a necessidade de não sublimar a língua portuguesa e mostra através da rejeição ao uso desta língua um fortalecimento cada vez maior e contestatório de consciência política e cultural em relação à cultura hegemônica e ao poder colonial.

 

 A história pessoal de Uanhenga Xitu comoregistrador”, serve de suporte para a construção de sua narrativa. Sua ficção é criada a partir do âmbito de sua convivência. O texto se torna o principal veículo de discussão e articulação de idéias a respeito dos problemas estabelecidos pela entrada e imposição de outras culturas. A influência de uma língua sobre outra, as conseqüências de convívio com culturas díspares que podem ocasionar mudança de paradigma.

 

Ao mesmo tempo em que Uanhenga Xitu coloca em questão o “novo”, representado pelo acesso a elementos culturais diversos, ele também tem a oportunidade de resgatar com a contradição criada, elementos de uma tradição do quimbundo relativos aos mais ricos cenários: as sanzalas, os quimbos, as baulas e povoações de Angola.

 

Acredito que para Uanhenga Xitu a idéia de discurso conciliatório entre condições históricas impostas, seja o principal objetivo de sua construção discursiva. Não há o que prevalecer em termos culturais há de se constatar o diferente. E fazer desta diferença um motivo para que o contraste coloque, no mesmo patamar de igualdade, culturas tão diferenciadas em sua composição. A diferença enriquece a identidade de umeu que procura se defender e se preservar.

 

Os escritores das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa têm trabalhado arduamente em favor de uma práxis que promova uma reorganização da sociedade pela ação autônoma de indivíduos. Por isso, o projeto literário em Angola prima por um discurso de reconhecimento dos próprios valores africanos, as línguas, a geografia, as condições existenciais, enfim, percebemos que historicamente vem se delineando uma forma de existência e uma idéia de autonomia política, social e cultural que emergem com a efetivação de uma literatura engajada decorrente da experiência de militância e de guerrilha de muitos autores. 

 

É através desta experiência com a militância que Severo D’Acelino, escritor e intelectual engajado no projeto literário que luta para configurar uma formação identitária afro-brasileira em Sergipe, se destaca desde a década de 60 enfrentando o período da ditadura militar, de repressão a toda e qualquer expressão política e cultural que viesse a contradizer o movimento político da época.

 

Severo estréia sua publicação de contos na seção Contos Afro-Sergipanos do jornal: Gazeta de Sergipe, no dia 10 de março de 2004. É neste espaço que o conto: Negra Conceição: a guerreira de Mulungu ganha sua primeira divulgação. Além de contribuir para ativar uma seção cultural inédita no jornal da cidade, Severo aproveita para resgatar valores culturais relativos à cultura popular negra, até então ignorados pela cultura local.

 

Neste conto Severo define a personagem como:

 

 “Conceição, a negra guerreira de Mulungu, nunca deixou de ser mulher, nunca deixou de ser negra e por diversas vezes, rejeitou a vida mansa que lhes ofereciam, foi vendida diversas vezes e nunca teve senhor, o seu maior cabedal foi sua rebeldia e sua dignidade de ser negra, mesmo de pele clara, conheceu sua mãe, mas nunca soube quem foi seu pai e se rebelava sempre, rejeitando as chamadas alforrias para manter a sua expectativa de sub-vida, pois tinha consciência que não se ajustaria, não nasceu para ser escrava o que nunca foi, nasceu guerreira e isso seria até a morte, uma morte animada na luta, a Negra, Guerreira de Mulungu”. (GAZETA DE SERGIPE, 2004, p.4).

 

Severo faz uma historiografia no conto da situação sócio-política e cultural da Capitania de Sergipe. O tempo mencionado evidentemente é o da escravidão. Embora João Mulungu seja citado no conto, o direcionamento da narrativa está centralizado em Conceição, o personagem feminino de tamanha importância para as fugas do grande herói negro sergipano, João Mulungu.

 

A narrativa de D’Acelino coloca em primeiro plano um sujeito histórico capaz de, em prol de suas próprias convicções, em um ato de rebeldia e coragem, vencer a perseguição, a caça planejada e direcionada aos negros pela força policial, com o objetivo de endossar o tráfico interprovincial, para salvar a pele de outro sujeito, no qual a comunidade negra depositava sua esperança de protesto e libertação, de uma raça oprimida pela invasão de um colonialismo fomentado pelo disparate de uma imposição cultural unilateral.

 

A descrição de Conceição no conto remete-nos à heroína de uma missão, somente permissível para aqueles cuja determinação fosse a razão de sua imperatividade diante dos propósitos de uma raça que se questiona, até hoje, o porquê de ter tantas metáforas usadas para justificar os negros/ afrodescendentes como racialmente subalternos.

 

Este conto se constitui como uma construção discursiva que contextualiza a revisitação memorial feita através da história de personagens negros. João Mulungu e Negra Conceição animam o trabalho do escritor junto à comunicabilidade de reconhecimento de uma ancestralidade articulada para não ser menosprezada ou ignorada e sim resignificada.

 

Uma leitura mais criteriosa do conto pode sinalizar uma possível intervenção crítica desestabilizadora dos discursos hegemônicos provocada pela necessidade de uma expressão identitária local, situada a partir da Capitania de Sergipe e localizada na Vila de Maruim.

 

 O Brasil é marcado por um modelo social hegemônico que nega as formas de ser brasileiro. A cultura popular negra tem significados muito mais abrangente do que os que habitualmente conhecemos, longe da formação de estereótipos, ela é plural. Entender o plural num país como o Brasil é perceber a singularidade cultural do tripé de raças aqui formado, desde o seu “achamento” até o trabalho com a cultura como algo próprio de um grupo e de troca de valores e representações.

 

A rebeldia de Conceição a define como um personagem disposto a enfrentar toda e qualquer imposição de um colonialismo essencializado, que subjuga a diversidade cultural e clama por uma unidade imposta pela força de quem domina os meios econômicos e políticos.

 

A resistência de Conceição e Mulungu para não serem capturados evidencia que esta resistência é especificamente política, no que se refere à reflexão de uma condição humana modelada na lógica da tradição e também de modelos culturais de ruptura.

 

Há de se deixar claro que o processo de aculturação do colonialismo português visava a desculturação dos povos colonizados. Portugal impôs seus padrões ao voltar-se obsessivamente para as conquistas ultramar, mas também sofreu transformações sociais, políticas e culturais significativas como conseqüência de seu processo de colonização. Temos que considerar que num conjunto dialético, as articulações ideológicas incorporam imposições de padrões e não refletem somente transformações unilaterais.

 

As tendências literárias engajadas desses intelectuais trabalham numa visão de conjunto. José Saramago, Uanhenga Xitu e Severo D’Acelino apresentam diferenças em seus textos a partir de uma dinâmica literária moldada por fatores histórico-sociais, os quais levam o sujeito histórico a promover uma imersão no seu universo cultural tendo como princípio a sua própria dinâmica comunicativa.

 

A resistência dos personagens a uma ordem hegemônica é também matéria do escritor consciente. Os personagens: o homem do povo, “Mestre” Tamoda e Conceição falam de um lugar de enunciação onde, as diferenças que aparecem no trabalho literário individual, servem de revisão histórica das condições sócio-culturais de uma minoria não veiculada por um sistema literário nacional.

 

Os textos, às vezes, se aproximam em decorrência de uma consciência crítica partilhada pelos escritores, pelas semelhanças entre os processos literários que utilizam e, principalmente, por uma configuração do imaginário social que antecipa uma experiência de interação dialética com outras culturas.

 

Espera-se que os escritores de literatura engajada, os intelectuais da esfera pública, não falem pelas minorias, não substituam a fala dos grupos minoritários por seus discursos literários, mas que, sobretudo criem estratégias particulares e contextualizadas para através da estrutura ficcional dar voz ao outro, possibilitar que este outro, tendo sua presença e criação justificada pelo contexto ficcional, possa expressar-se a partir de suas próprias aspirações que emergem de espaços periféricos, de lugares de exclusão.

 

Anônimos ou não, os personagens de Saramago, Uanhenga Xitu e Severo D’Acelino se apropriam de um discurso cuja tensão transposta para o texto evidencia uma manifestação ideológica através de aspirações subjetivas, não totalmente particulares, mas de certa forma coletiva.

 

Os intelectuais da literatura engajada em Angola e Brasil, mais precisamente Uanhenga Xitu e Severo D’Acelino promovem, através do reconhecimento de uma identidade nacional, a atualização de um momento histórico que, em debate, impulsiona o processo de desalienação cultural, quando traz à cena o caráter pluralístico da cultura do quimbundo, pela língua, e da cultura brasileira, pela resignificação da ancestralidade, tendo sempre em vista a democratização da vida social.

 

Saramago, cuja produção ficcional procura recontar a história de seu país, toma para a sua narrativa o papel reduzido dos anônimos pelos grupos hegemônicos e amplia, a partir da própria resistência do personagem, sua forma de participação no discurso, até então, historicamente escamoteada por uma oficialidade alienadora. O que Saramago faz é reconstruir essa história, que parece escamoteada, com o exercício de uma prática literária, em que a subalternidade ganha a formulação de um discurso de “verdade” e cheio de articulação de reflexões voltadas para uma intervenção política, social e cultural.

 

A caligrafia de Saramago recupera a história na estória. Esse movimento de recuperação proporciona uma dinâmica ao texto, onde os supostamente vencidos estejam no centro. Os personagens de Uanhenga Xitu e Severo’Acelino por questões históricas também são levados a uma representação de ascensão revolucionária no texto, ações que se pressupunham estáveis sustentam linhas discursivas baseadas num estatuto de resistência à imposição cultural do colonialismo português.

 

Dessa forma, quer seja por uma recuperação historiográfica, por uma revisão lingüística ou por uma valorização às raízes ancestrais, a dialética discursiva criada por estes intelectuais seduz o leitor para as discussões em torno das interseções coletivas. Os personagens representam sujeitos históricos capazes de problematizar o entrecruzamento estória/história, um modo de refletir no tecido verbal construído, a experiência de um cotidiano social fundamental à subjetividade da existência humana, de sua pluralidade presente. De acordo com Edward Said:

 

Em outras palavras, o resultado dos atuais debates sobre o multiculturalismo não se afigura propriamente uma “libanização”, e se esses debates apontam um caminho para transformações políticas e mudanças na forma como se enxergam as mulheres, as minorias e os imigrantes recentes, não por que temê-los nem tentar evitá-los.(SAID, Edward, 1995, p.28-29).

 

A narrativa deste projeto literário movimenta a escrita dos intelectuais para uma auto-reflexividade multicultural. Neste sentido, a narrativa não é apenas o registro, mas um instrumento que direciona o paradigma da ideologização dos discursos da autoconsciência teórica sobre a história enquanto oficialidade e a ficção como pedagogia para uma releitura do passado no presente, onde as diferenças sejam interpretadas como parte da diversidade de configurações identitárias legitimadas por uma escrita literária pronta ao questionamento de verdades absolutas. 

 

 

Referências Bibliográficas:

ABDALA JR., Benjamin. De Vôos e Ilhas: Literatura e Comunitarismos. Cotia/ SP: Ateliê Editorial, 2003.

GAZETA DE SERGIPE. Sergipe, março de 2004. Nº 13.516.

HALL, Stuart, A identidade cultural na pós-modernidade, Rio de Janeiro: Dp&a Editora, 2001.

SAID. Edward, Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SANTILLI, Maria Aparecida. Estórias Africanas: história e antologia. São Paulo: Ática, 1985.

SARAMAGO, José. O Conto da Ilha desconhecida. São Paulo: companhia das Letras, 1998.

 

 

 

COMO CITAR ESSE ARTIGO

SILVA, Rosemere Ferreira da. As estratégias discursivas na construção do sujeito histórico, através da literatura engajada de José Saramago, Uanhenga Xitu e Severo D’Acelino. In: Revista Inventário. 4. ed., jul/2005. Disponível no web world wide em: http://www.inventario.ufba.br/04/atualize/04rsilva.htm.




 

 

 

 

 



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