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Poéticas e políticas da desterritorialização:

notas de pesquisa

 

Sandro Ornellas

Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da UFBA

Professor de Literatura Portuguesa do Instituto de Letras da UFBA

ssornellas@hotmail.com

 

 

Resumo:

Mapeamento das relações entre vanguardismos modernistas, totalitarismos europeus, etnologia e imperialismo que tomaram corpo na primeira metade do século XX, com prolongamentos até os anos 50 e 60.

 

Palavras-chave: Desterritorialização, Vanguardas, Totalitarismos, Etnologia, Imperialismo.

 

Abstract:

Mapping liaisons amongst modernist vanguards, european totalitarisms, ethnology and imperialism that grew up in the first half of 20th century, that have lenghtened up to 50's and 60's.

 

Key-words: Deterritorilization; Vanguards, Totalistarism, Ethnology, Imperialism.

 

 

1. Paisagens centrais

 

São estranhos os descaminhos que o pensamento toma para a configuração do presente, pois o ambiente político-cultural europeu, na primeira metade do século XX, conjuga fortemente políticas fascistas e políticas imperialistas. Se quisermos buscar algumas especificidades contextuais para tais designações, podemos ler alguns índices no binômio nacionalismo/internacionalismo, noções que sustentavam diversas políticas entre países europeus, com vistas, também, às políticas extra-européias. Por um lado, algumas perspectivas culturais trabalhavam dentro de um registro predominante e francamente internacionalista, de matrizes democráticas com viés social-comunistas e que sofrerão, posteriormente, forte impacto e incremento com o stalinismo soviético. Por outro lado, verificamos o traço eminentemente nacionalista nos fascismos e imperialismos, ancorado no fortalecimento de um projeto europeísta.

 

Essas diferentes políticas estão entre as principais causas dos confrontos bélicos do período, assim como terão largas e diferentes influências sobre os saberes antropológicos produzidos no período. Escrevem Benoît de L’ESTOILE, Federico NEIBURG e Lygia SIGAUD que

 

no caso da França, a etnologia foi definida como uma ciência colonial voltada para a identificação e a compreensão das populações indígenas, investida da “missão nacional” de manifestar no plano internacional os valores universais da ciência e o suposto respeito pelas sociedades dominadas. Os cuidados com o “prestígio nacional” e o temor em ver-se superado pelas outras potências no estudo das populações nativas desempenharam um papel considerável no apoio dado pelo estado às instituições antropológicas. Com um alcance certamente diferente, e com uma vocação sensivelmente mais nacionalista, esse parece ser também, (...), o caso da relação entre antropologia da nação e antropologia do império em Portugal (2002, p. 27).

 

Governos de tendências fascistas, como na Alemanha, na Itália, na Espanha e em Portugal, e governos assentados sobre impérios já consolidados, como na Inglaterra e na França, apesar das concretas diferenças nas políticas internas, foram cúmplices, umas mais outras menos agressivas, nas suas políticas externas (lembro aqui que na Alemanha hitlerista, na Itália de Mussolini, na Espanha franquista e no Portugal salazarista, o nacionalismo fascista e o imperialismo formaram um par na atuação de políticas tanto internas quanto externas; relevante também pensar no caso norte-americano, com o New Deal do pós-Crash de 1929, em sintonia com uma política expansionista internacional do país, e no caso brasileiro, com o varguismo dos anos 30 e 40 empreendendo uma onda de industrialização do país junto a uma política externa agressiva no momento da guerra, ao mesmo tempo em que mantinha internamente uma mão forte). Ambas as formações de políticas culturais internacionalistas – a de tendência fascista e a de tendência imperialista – traziam em si o controle (por eliminação e/ou assimilação) da alteridade afro-asiática, ao mesmo tempo em que enfatizavam o particularismo histórico-cultural, muitas vezes de bases étnico-raciais, nas relações entre os povos.

 

Quando pensamos em como as vanguardas modernistas conviviam com esse espaço de grande agitação no pensamento político, notamos que, no cenário político-cultural da Europa entre a primeira década e os anos 40 do século passado, havia uma espécie de “dialética oculta” entre as vanguardas históricas, seu uso da técnica e da tecnologia e a cultura política antiburguesa dos totalitarismos nos anos 30 e 40. Observamos que, por um lado, temos uma cultura de massas tecnológica, rechaçada, estereotipada e feminilizada (HUYSSEN, 1997, p.41-67) como o Outro de um modernismo oficial e falocêntrico. Por outro lado, também vemos o fascismo e o totalitarismo como outros do modernismo, e em sentido mais amplo da própria modernidade. A idéia de vanguarda, com sua cultura tecnológica, flertou e ainda flerta tanto com a cultura de massa quanto com os fascismos. É conhecido o final do famoso texto de Walter Benjamin sobre a obra de arte e sua reprodutibilidade técnica, que trata do surgimento de uma estética da guerra com o uso da tecnologia vanguardista por parte dos regimes totalitários nos grandes desfiles, no seu traço espetacular, esportivo e guerreiro, nos quais a massa vê seu próprio rosto conjugado à “apoteose fascista da guerra” (BENJAMIN, 1994, p.194-6). Benjamin experimentava, ambiguamente, a fascinante expectativa de autonomia humana com o avanço tecnológico trazido pelo cinema e pela fotografia, e o simultâneo horror do nazi-fascismo.

 

Interessa ressaltar que, por mais que o nacionalismo fascista compartilhe com algumas vanguardas sua opção por uma cultura técnica, de valorização dos recursos materiais e tecnológicos disponíveis para fins político-culturais, o internacionalismo predominante em algumas dessas vanguardas vai caminhar no sentido de uma pesquisa de realidades socioculturais alternativas àquelas demasiadamente constritoras da Europa. A relevância da sensibilidade nômade, que atravessa e faz movimentar algumas subjetividades vanguardistas, aponta para uma abertura ao outro, esse outro que vai demandar sua autonomia no pós-1945, com a eclosão das guerras independentistas na África e na Ásia, começo do desmantelamento dos impérios europeus. Podemos, portanto, estabelecer laços de afinidades entre as vanguardas históricas do modernismo, seus peculiares processos de subjetivação, e as alteridades culturais que passaram a ser mais controladas, e também a ter mais visibilidade, a partir da grande onda imperialista dos séculos XIX e XX, com a colonização da África e da Ásia.

 

2. Desterritorializações periféricas

 

Na busca de realidades socioculturais alternativas pelas vanguardas, destaca-se o primeiro surrealismo, constituído por artistas com forte interesse etnográfico, porém pouco sistêmicos e “científicos” no seu olhar estranhador, e extremamente coerentes na sua atitude transgressora e afirmativa de outrização (CLIFFORD, 2002, p.192-78). Desse primeiro surrealismo emergirão processos depois facilmente vinculados ao imaginário vanguardista, como a colagem, a justaposição e a aleatoriedade ilógica da visão de mundo e na composição de textos e imagens. No Brasil, vemos na elaboração da figura do “mau selvagem” antropófago por Oswald de Andrade o estabelecimento de uma relação de mútua dependência entre devorador e devorado. A “blague” de Paulo Prado, no prefácio ao Poesia pau-brasil, de que o poeta brasileiro “do alto de um atelier da Place Clichy descobriu, deslumbrado, sua própria terra” (ANDRADE, 1971, p.67), remete ao fato de Oswald ver nas vanguardas européias e no seu uso da figura do canibal, entre outras, um gesto que aos brasileiros pareceria óbvio, senão natural e imediato (cf. NUNES, 1979; SUBIRATAS, 2001). A metrópole fala das colônias, logo, Oswald se apropria dessa imagem e a relança contra a própria metrópole: “Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A Idade de Ouro” (ANDRADE, 1995, p.49). O mito de uma Idade de Ouro foi largamente usado entre os vanguardistas europeus: um inconsciente mítico e mágico entre os surrealistas, o libertarismo anárquico dos dadaístas, o desrecalque das atitudes e das formas, a crítica aos padrões de comportamento, o sonho misterioso de um paraíso arcaico, originário, utópico e selvagem, a infância, tudo isso remetia à descoberta da América no século XV e à penetração da África no século XIX pelos europeus. Portanto, é preciso ler as histórias entre centro e periferia como definitivamente entrelaçadas, assim como suas relações nunca foram, de fato, relações de mão-única. Oswald dá uma banana subversiva para a lógica binária do ou eu ou o outro presente na colonização. O seu bárbaro tecnizado é um ser híbrido, um mestiço cultural que não prescinde as alteridades, mas que se coloca afirmativamente do lado do seu desejo e da sua fome, e avança para o outro com sanha guerreira.

 

Inúmeros teóricos pós-coloniais fornecem argumentos e instrumentos para a destruição da imagem do imperialismo como simples via de mão única na relação entre povos e culturas. Penso aqui em Edward Said, para quem o imperialismo, enquanto estrutura de sentimentos, estabeleceu uma malha de controle do nativo, ao mesmo tempo em que também prendeu o habitante da metrópole numa relação de dependência (cf. SAID, 1995). Essa dialética do senhor e do escravo produziu no modernismo vanguardas que se aproximavam em muitos pontos dos movimentos de esquerda e direita, oposições internas aos governos imperialistas. Homi Bhabha também forjou um poderoso aparato teórico-crítico que produz, muito baseado em Frantz Fanon, uma relação de mútua dependência afetiva e desejante partindo do olhar discriminante do colonizador (cf. BHABHA, 1998, p.105-128).

 

No pós-guerra dos anos 40 e 50 do século passado estouram as guerras independentistas na África. Com elas, os poetas Léopold Senghor e Aimé Césaire articulam o Négritude, movimento poético cuja eficácia junto ao terreno político na construção de uma África livre substituiu, com as devidas diferenças guardadas, o pan-africanismo anterior. São mais do que conhecidas as íntimas relações que Césaire, Senghor e alguns outros dos poetas revolucionários em torno do Négritude mantiveram com o grupo surrealista de Breton e com o Partido Comunista Francês. Nessas relações articulavam-se atividades subversivas, escreviam-se artigos polêmicos e, sobretudo, formulava-se um imaginário de uma cultura negro-africana transnacional, permeada por elementos que aos surrealistas figuravam com fortes tendências surrealizantes. Entretanto, é importante vermos nessa relação entre surrealismo e Négritude um acontecimento semelhante ao uso que Oswald fez da figura do canibal daliniano, por exemplo. A clara percepção de que figurações e metáforas não têm proprietário no mundo da cultura, e que podem e devem ser re-apropriadas, é afirmada tanto na antropofagia oswaldiana e na “surrealização” presente nos Cadernos de um retorno ao país natal, de Césaire, quanto nos traços étnicos extraeuropeus que compõem os poemas de Breton. A teorização do Négritude por Senghor também vai ser profundamente influenciada por formulações etnográficas européias que preconizavam o irracionalismo, o intuitivismo, o vitalismo e o pensamento mítico para as culturas africanas. Noureini Tidjani Serpos, malgrado aponte as tantas leituras etnográficas demasiadamente ingênuas por parte do poeta e político, conclui precisamente que elas não poderiam se dar de outra maneira, pois essa primeira geração de escritores africanos pós-independência travou contato com seu continente do exílio, através de bibliotecas abarrotadas por tomos e mais tomos de descrições etnográficas das culturas africanas (SERPOS, 1987, p.122-3).

 

Essa relação entre a formulação de uma africanidade nos países independentes e as informações etnográficas européias sobre a África e seus povos é algo problemático na crítica africana e africanista. A figura do moderno escritor e intelectual africano se dá, contemporaneamente, como um híbrido que não mais consegue se descolar totalmente das imagens de “África”, “africano” e “negro” que a Europa produziu com seu racialismo (cf. APPIAH, 2001, p.96). Por isso Kwame Anthony Appiah tem extremo cuidado ao procurar discutir alguns impasses africanos, sem necessariamente procurar resolvê-los. O hibridismo não se restringe apenas às elites dos países africanos, mas se imiscui por todas as faixas sociais das populações (cf. idem, ibidem, p.92). Ao mesmo tempo, Appiah também não quer confundir a pluralidade de vozes africanas com as vozes de negros da diáspora, particularmente dos negros norte-americanos e sua pauta de reivindicações muito particulares. Mas esse entrelaçamento entre as culturas negro-africanas e as culturas colonizadoras se deu e se dá de modo muito delicado. As formas de nacionalismo nos países africanos variaram muito conforme a época – por exemplo, nos momentos em torno das independências e na década de noventa – e conforme o país.

 

Com relação ao caso especificamente português de uma desterritorialização provocada pelo contato com culturas extraocidentais, particularmente no modernismo, um problema se instala quando vemos o quanto o primeiro e o segundo modernismos portugueses, respectivamente as Gerações de Orpheu e de Presença, foram refratários a um maior internacionalismo, optando, na versão mais bem acabada de Fernando Pessoa, mas não somente nela, pelo nacionalismo imperial, o que vai fazer dos processos de outrização de Pessoa, sua famosa heteronímia, mais próximos de um devir-imperialista do que de um devir-minoritário. A questão colonial na Primeira República era vista como fundamental, com as colônias sendo consideradas como patrimônio inalienável da portugalidade, então em franca crise diante do caos político e econômico em que Portugal se encontrava (cf. OLIVEIRA MARQUES, 2001, p.361-73). A presença de tendências monárquico-imperiais em Fernando Pessoa deve também e principalmente ser entendida à luz do contexto político português. Há, no entanto, tentativas posteriores de estabelecimento de um internacionalismo artístico-cultural em Portugal a partir dos anos 40, com a voga neo-realista aliada ao realismo socialista, e com um surrealismo tardio comandado pela figura do poeta Mário Cesariny. Mesmo que com propostas bem diferentes, ambos contrapor-se-ão à estética e à política oficiais do Estado Novo, estabelecendo simultaneamente pontos de ruptura ao culto pessoano. Cesariny, inclusive, recentemente lançou um livro de irônica e impiedosa crítica a Fernando Pessoa, intitulado O Virgem Negra: Fernando Pessoa explicado às criancinhas naturais e às estrangeiras por M.C.V. (CESARINY, 1996). Este livro de poemas pode e deve ser considerado como um rebento temporão das diatribes surrealistas no país.

 

Em que pesem as particularidades do pequeno país europeu, a incipiente e precária discussão antropológica em Portugal teve uma função que sobrepôs nitidamente as esferas de uma antropologia do império e de uma antropologia da nação (THOMAZ, 2002b, p.95-6), fundamentalmente com a aproximação e fundação do Estado Novo. Ambas atuaram decisiva, porém nem sempre assumidamente, na elaboração do Ato Colonial de 1930, sintomaticamente escrito três anos antes da institucionalização do Estado Novo salazarista e de seu regime autoritário, bem como no I Congresso de Antropologia Colonial Portuguesa de 1934 (cf. idem, 2002a). Assim, estabelecem-se possíveis e fecundos vínculos portugueses entre um modernismo e uma antropologia de fortes traços nacional-imperiais como que quase simultâneos à chegada ao poder de um fascismo à lusitana. Como bem ressalta Omar Ribeiro Thomaz, a alteridade da arte e da cultura negro-africana não teve nenhuma influência sobre a produção artístico-cultural modernista portuguesa (idem, 2002b, p.106;119). Tudo o que essa teve de relevantemente questionadora das realidades nacional e européia lhe chegou por ares e terras de além-Pirinéus, e não em função da longa e maciça presença portuguesa nas colônias africanas.

 

3. Etnologia na berlinda

 

A etnologia, por sua vez, é o que ocupa o lugar mais ambíguo dentre os territórios disciplinares aqui em questão. Ao mesmo tempo em que estabelece uma ponte concreta entre os diversos grupos culturais, apontando firmemente para poéticas e políticas da desterritorialização na primeira metade do século XX, ela também se revela como profundamente imersa nos processos de subjetivação e de discursividades ocidentais, principalmente na sua vertente escrita, a etnografia. Podemos, e devemos até, ver a primeira dessas características como corolário da segunda, isto é, as pontes que a etnologia estabelece com outras culturas e povos só se dão em função de uma “lição de escrita” etnográfica, produtora de diferenças e de alteridades, por mais que pretensamente “científicas” na sua metodologia.

 

Com o desenvolvimento das pesquisas etnológicas da primeira metade do século XX, Lévi-Strauss se estabelece como uma das figuras de ponta da antropologia. Sua importância se dá principalmente em função do seu trabalho na reestruturação da antropologia como um todo disciplinar, em particular da etnologia, com seus escritos etnográficos, nos quais ao mesmo tempo em que apresenta dados de pesquisas de campo, estabelece novos parâmetros de observação, avaliação e escrita. No pós-guerra, Lévi-Strauss e a etnologia estrutural construíram uma poderosa máquina crítica contra os ideais iluministas de uma subjetividade moderna assentada no humanismo universalista, claramente baseado nas vivências e ideário próprios ao homem branco europeu. Nessa crítica, Lévi-Strauss apela para a autonomia histórico-cultural das diversas formas de subjetividade extraocidentais e para a desierarquização das culturas, o que estava oficializado desde pelo menos as teorias racialistas de Gobineau e outros, que no século XIX serviram de legitimação “científica” para a empresa colonial européia na África e na Ásia.

 

Os mitos ameríndios, africanos e asiáticos servirão para Lévi-Strauss, por sua vez, como meios de interrogação e relativização da cultura moderna ocidental. Mito extraocidental e arte ocidental aproximar-se-iam com sinais invertidos na condição mimética de figuração da realidade. De um lado, o mito operaria uma espécie de ritualização culturalmente singular de uma dada estrutura estética, necessária à conformação do mito como narrativa verossímil; de outro lado, a arte operaria uma estruturação de uma prévia experiência étnico-tribal de uma dada cultura (cf. LÉVI-STRAUSS, 1989, p.15-50; MERQUIOR, 1975). Ambos se tocariam, ambos interagiriam, ambos se interpenetrariam e se contaminariam. Por mais que hoje tais definições e relações nos apareçam como demasiadamente arbitrárias e questionáveis, deixemo-las por enquanto apenas enunciadas. Lévi-Strauss também enfatiza o caráter cognitivo da arte, vinculando-a à ciência e distanciando-a, por seu turno, da magia. Junto a esse esquema arte/ciência/magia, ele elabora a noção de “bricolagem” como “método mágico” de conhecimento extraocidental, e a figura do bricoleur como o demiurgo desse método. O bricoleur atuaria em oposição ao “engenheiro” ocidental e sua racionalidade técnico-conceitual voltada para o conhecimento da realidade. O bricoleur seria um compilador de signos casuais e aleatórios, ao passo que o cientista e o artista abririam conjuntos, criando fatos a partir de estruturas conceituais, no caso da ciência, e sígnicas, no caso da arte (LÈVI-STRAUSS, op. cit., p.34-6; 48-9).

 

A crítica feita a Lévi-Strauss e à etnologia (DERRIDA, 1995; 1999) é de que ambos acolheriam as premissas do etnocentrismo no mesmo momento em que as denunciariam. A etnologia estruturalista, em particular, atuaria dentro do círculo epistemológico e hermenêutico do saber ocidental, pois o etnógrafo ainda se localizaria como “engenheiro” do saber textualmente produzido sobre o Outro, sem assumir, e isto é muito importante, o quanto seu método se assemelharia ao próprio discurso da “bricolagem”. Hoje, todavia, a própria antropologia está empreendendo a reavaliação das suas práticas discursivas passadas e presentes. Nos discursos passados, opera-se a rediscussão da antropologia como saber de Estado, pouco a pouco se deslocando no sentido de uma autonomia metodológica do conhecimento produzido. Nos discursos presentes, destaca-se o crescente engajamento dos antropólogos em questões de cunho especificamente político-jurídico quanto à defesa e ao estatuto de grupos minoritários em âmbitos estritamente nacionais, transformando-a de um saber eminentemente de Estado em um saber em prol dos interesses de minorias sem força e tradição políticas (L’ESTOILE, NEIBURG, SIGAUD, op cit).

 

4. Do nome próprio ao nomadismo do desejo e do discurso

 

Quis verificar, portanto, uma diferenciação entre as práticas discursivas de algumas vanguardas e da etnografia. É dessa diferenciação que surgirá uma sensibilidade nômade na contemporaneidade. Se o etnógrafo se pretendeu “engenheiro” de um conhecimento textual, sem assumir-se como bricoleur, os artistas que atuaram nesse período assumiam seu traçado bricoleur. É precisamente essa assunção que vai caracterizar uma poética nômade, desvencilhada de leituras e caracterizações que passam por crivos demasiado eurocêntricos. A bricolagem, todavia, é uma noção que ainda opera dentro do círculo etno-logo-cêntrico, pois o etnólogo a observa em oposição ao seu saber etnográfico-científico, que pretende elaborar um caminho à realidade e à verdade. Logo, a bricolagem é vista como simulacro de paraíso, “queda criativa” do discurso com relação ao universo da ciência, com sua vontade de verdade. Substituir o conceito de “bricolagem”, bem como as noções vanguardistas de “surrealismo”, “cubismo”, “dadaísmo”, “antropofagia” ou “neobarroco”, pelo jogo da “identificação do desejo ao discurso” (DERRIDA, 1999, p.170-1) acaba sendo uma operação que viabiliza um elemento transgressor por parte da cultura contemporânea. “Bricolagem”, “surrealismo”, “dadaísmo”, “cubismo”, “antropofagia” e “neobarroco” são aqui tomados como nomes próprios dados a práticas de escrita que se utilizam de uma sensibilidade que desenha entre-lugares por territórios que acabam se indiferenciando em procedimentos de acumulação, colagem, justaposição, elipses, entredevoração, montagem, sobreposição, proliferação – nomes que atuam como topônimos achados aleatoriamente. Aqui, a escrita amplia seu rastro e se expande até as suas próprias fronteiras, desconstruindo o etnocentrismo presente no pensamento ocidental.

 

5. Referências

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COMO CITAR ESSE ARTIGO

ORNELAS, Sandro. Poéticas e políticas da desterritorialização: notas de pesquisa. In: Revista Inventário. 4. ed., jul/2005. Disponível no web world wide em: http://www.inventario.ufba.br/04/04sornellas.htm.

 

 





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