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ISSN 1679-1347

Inventário

Revista dos estudantes do

Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da UFBA

(PPGLL)

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Artigo - Número 02 - Abril de 2004


Arquivo: a morada da censura

 

Alícia Duhá Lose (Doutoranda do PPGLL/UFBA)

 

Introdução

Este trabalho foi o resultado das discussões e debates instigados através das leituras realizadas ao longo da disciplina LET679 - Seminários Avançados IV, coordenada pela Profa. Dra. Eneida Leal Cunha. A disciplina abordou e discutiu as vertentes de reflexão teórica e de abordagem da literatura e da cultura do século XX. Nesta perspectiva foram trabalhados textos de Freud, Foucault, Deleuze, Derrida, Nietzsche, iniciando-se o semestre com um texto de Roberto Corrêa dos Santos.

Assim sendo, as reflexões constantes deste trabalho são resultado dessas leituras e discussões acerca destes autores, assim como de leituras complementares relativas ao projeto de pesquisa que estamos desenvolvendo. Optamos, no entanto, por verticalizar a leitura fazendo um recorte no estudo sobre arquivo a partir do livro de Derrida (2001) aplicando a teoria à prática do poeta Arthur de Salles.

Do que se fala

É preciso explicitar, primeiramente, que estamos tratando de uma reunião de documentos relativos ou pertencentes a um poeta simbolista/ parnasiano baiano, Arthur de Salles. Trata-se, portanto, do que denominaremos, a priori de um Arquivo/Acervo (1) Literário, embora tenhamos consciência de que nenhuma denominação ou classificação pode ou deve ser feita de forma tão simplista. Destarte, concordamos com Maria da Glória Bordini afirmando que

Trabalhar com acervos literários implica um enfoque multidisciplinar. Os manuscritos de um autor e os documentos que dão testemunho da gênese de sua obra e dos episódios de sua vida requerem um tratamento que foge à simples arquivologia. (BORDINI, 1995: 5)

Desta forma, o trabalho com acervos faz-se a partir de um conjunto de investigações interdisciplinares, por isso é comum dizer que a um arquivo interessa tudo, e interessa mais ainda o uso que se fará deste tudo, no todo ou em partes, pois, segundo Compagnon

do ponto de vista da apreensão do ato de consciência que representa a escritura como expressão de um querer-dizer, qualquer documento - uma carta, uma nota - pode ser tão importante quanto um poema ou um romance. (COMPAGNON, 1999: 65)

Mal de Arquivo, termo cunhado por Jacques Derrida em seu livro homônimo, explica aquilo que o psicanalista Sigmund Freud denominou de pulsão de morte e caracteriza a perturbação que sofrem aqueles que se envolvem nesta trama arquivística:

A perturbação do arquivo deriva de um mal de arquivo. Estamos com mal de arquivo (en mal d'archive). Escutando o idioma francês e nele, o atributo "en mal de", estar com mal de arquivo, pode significar outra coisa que não sofrer de um mal, de uma perturbação ou disso que o nome "mal" poderia nomear. É arder de paixão. É não ter sossego, é incessantemente, interminavelmente procurar o arquivo onde ele se esconde. É correr atrás dele ali onde, mesmo se há bastante, alguma coisa nele se anarquiva. É dirigir-se a ele com desejo compulsivo, repetitivo e nostálgico, um desejo irreprimível de retorno à origem, uma dor da pátria, uma saudade de casa, uma nostalgia do retorno ao lugar mais arcaico do começo absoluto. Nenhuma paixão, nenhuma pulsão, nenhuma compulsão, nem compulsão de repetição, nenhum "mal-de", nenhuma febre, surgirá para aquele que, de um modo ou outro, não está com mal de arquivo (DERRIDA: 118-19).

Quem trabalha com arquivo sofre do mal de arquivo porque ao classificar, selecionar, escolher este ou aquele documento para ser visto sob um determinado aspecto, já está impondo o seu ponto de vista, fazendo os seus recortes e as suas censuras (isso visto através da ótica freudiana como sinônimo de recalque) de forma pessoal e quase inconsciente.

O autor e suas censuras

Arquivo, como se disse há pouco, pode ser definido como uma reunião, uma organização, um ajuntamento de elementos. E, em se tratando de arquivos dos escritores e intelectuais, está-se falando de arquivos de uma certa forma conscientes, nos quais os elementos são agrupados com um determinado propósito. Diz-se consciente porque, mesmo que o autor não imagine o seu arquivo como sendo objeto de análise por terceiros, ele próprio guarda, armazena, agrupa, organiza seu espólio, tendo com o produto do seu trabalho uma relação patriarcal, atitude da qual depende a constituição de todo e qualquer arquivo (Idem: 13). Além do que, como lembra Derrida, "O arquivo sempre foi um penhor ( grifo do autor ), e como todo o penhor, um penhor de futuro" (Idem: 31). Investindo nesse futuro, de forma consciente ou não, todo escritor se arquiva.

Sendo assim, poder-se-ia pensar em algo que correspondesse a algum conjunto de semelhanças, porém, cada arquivo, sendo, como se verá mais tarde, um elemento com vida própria, tem suas características e peculiaridades. Posto que arquivo é memória e memória é um organismo vivo. Desta forma, cada arquivo tomará uma função diferente a depender de quem o arquiva e de como esse arquivamento é feito, pois

a estrutura técnica do arquivo arquivante determina também a estrutura do conteúdo arquival, em seu próprio surgimento e em sua relação com o futuro. O arquivo tanto produz quanto registra o evento" (Id.: 29). (grifos do autor)

Há arquivos organizados pelos próprios autores, ao longo de suas vidas, e neles o próprio escritor é, ao mesmo tempo, o arquivando e o arquivado, selecionando e recalcando, dando à luz e dissimulando num jogo de esconde-esconde, fazendo do seu arquivo o lugar do dito e do não dito, da voz e do silêncio, do manuscrito e do palimpsesto. O escritor sofre de forma extrema do mal de arquivo, da pulsão de morte que, trabalhando contra o próprio arquivo, tende à destruí-lo ou a disfarçá-lo, mascará-lo, maquiá-lo. O arquivo trabalhando contra si mesmo, deixando registrado não os traços da memória, mas registros que por si já são traços de outras memórias.

O escritor, de forma quase pueril, acredita poder preservar para a posteridade apenas o melhor de si, da sua imagem. No entanto, mesmo que seu intento seja expor apenas o seu perfil mais fotogênico, sempre haverá um "rato de arquivo" para descobrir e desvelar o que estava escondido, dissimuladamente, presente nas ausências.

Organizando todos os seus passos, tentando apagar todas as pistas, o autor deixa outras, que fazem o arquivista (ou seja lá o nome que recebe esta personalidade invasiva que dedica sua vida à pesquisa sobre a vida e a obra de outrem) percorrer outros caminhos, por vezes mais longos, por vezes equivocados, mas que certamente, o farão chegar lá, naquele sótão escuro onde o escritor colocou todos os seus silêncios e apagamentos.

Há outros escritores que ainda em vida delegam o poder de organização e administração de seus arquivos, mesmo que de forma parcial, diga-se de passagem, a terceiros. Fala-se em parcial porque sempre haverá, antes da cessão dos materiais deste pré-arquivo, que já é, de uma certa forma, um arquivo, uma seleção prévia do arquivável, portanto, os elementos que entram nesta categoria já são a sobra do que foi recalcado.

Há arquivos, também, organizados post-mortem, cuja tutoria, ou curadoria, está a cargo de determinadas instituições, pelos quais passarão inúmeros pesquisadores, e cuja organização nunca chegará a tomar uma feição definitiva, se é que se pode almejar qualquer coisa de definitivo em organismos tão vivos quanto os arquivos. Neste caso, o recalcamento, ou a censura, fica a cargo da família ou dos herdeiros. Sendo, desta forma uma segunda censura, pois o próprio autor, de forma (in)consciente, já teria feito a sua própria seleção.

Arconstituição

Este neologismo, a princípio estranho, une em si dois elementos indissociáveis. O arquivo (neste recorte específico) literário é sempre uma instituição, e como tal, possui os seus comandantes, os seus responsáveis. Estes cérberos podem tomar feições variadas, como, por exemplo, o próprio autor, a família, herdeiros de qualquer instância, pesquisadores, institutos de ensino e pesquisa, governo, etc. A todos estes guardiões, Derrida chama de Arcontes, termo que na antiga civilização grega designava os magistrados superiores que detinham o poder político de fazer e representar as leis, a autoridade publicamente reconhecida, que interpretava os documentos oficiais sob a sua jurisdição.

Para ser arquivo, não basta ser depositado em um lugar, sobre um suporte, à disposição de uma autoridade, é preciso o poder arcôntico de unificação, identificação e classificação, ou seja o poder de consignação, entendendo-se consignar, assim como Derrida o define: designar uma residência, confiar, pôr em reserva, em um lugar e sobre um suporte, reunindo os signos; coordenar em um único corpus, sistema ou sincronia todos os elementos que se articulam em uma unidade. Em um arquivo não deve haver dissociação ou heterogeneidade (Id.: 14). Assim como não há memória sem suporte, também não há arquivo sem arconte e sem recalques. Não há arquivo sem mal de arquivo.

Todo o arquivo é a casa dos fantasmas, sempre há um a espreitar o tempo todo, a povoar as prateleiras e os papéis, dialogando com o pesquisador ou qualquer um que ousar andar por entre as suas colônias de ácaros e fungos.

O arquivo é um cemitério, tão movimentado, cheio de vidas e memórias quanto um cemitério. Nele se depositam as marcas, as provas, os restos de toda uma vida. Estes restos, no entanto, não são sobras, são resultados, e não terão o seu sossego eterno garantido, serão visitados e chorados constantemente, louvados e execrados, e, depois de um certo tempo, serão removidos, remexidos pelos coveiros para ocuparem outro lugar, e irem mudando de feição à medida em que o tempo passa e a cada vez que se olha para eles - pois quanto maior o distanciamento em tempo e grau de parentesco (ligação), maior a isenção em relação ao olhar sobre o acervo - até o corpo virar esqueleto, que virará ossada que, por sua vez, virará pó, e as gerações seguintes os verão por outro prisma e os espíritos virarão espectros.

Todo cadáver é preparado para o próprio enterro, são postas nele suas melhores roupas, o cabelo ganha arrumação cuidadosa, alguns passam por uma esmerada sessão de maquiagem; da mesma forma acontece com o arquivo, que é arrumado e mascarado para ganhar a melhor feição na hora em que todos os olhares estarão voltados para ele.

A Pesquisa nos Arquivos

"Não há arquivo sem um lugar de consignação, sem uma técnica de repetição e sem uma certa exterioridade; não há arquivo sem exterior" (DERRIDA: 22), também não há arquivo sem suporte, sem interpretação, sem decodificação do que nele está contido.

A pesquisa do arquivo não é uma pesquisa de origem, uma mera escavação, é um trabalho de diálogo entre os indícios. Os arquivistas não são garimpeiros, são arqueólogos.

Como se afirmou anteriormente, um arquivo é um organismo vivo, este organismo, porém, fica em estado total de inércia até que alguém vá até ele e se aproprie (no melhor dos sentidos) das informações que lá estão contidas, estejam elas explícitas ou implícitas. O arquivo volta à vida, saindo do seu estado de latência no momento em que é observado, analisado, pesquisado, e esta pesquisa pode percorrer os mais variados caminhos, a depender dos objetivos do pesquisador sensu lato, podendo ainda mudar de rumos, a depender do que seja descoberto, a depender da forma como o arquivo decidir se mostrar. Este jogo de mostra-não-mostra dos arquivos fascina e instiga o pesquisador, que sofrendo do mal d'archive, é incitado a ir cada vez mais fundo em sua pesquisa. No entanto, a intenção real do arquivo era fazê-lo desanimar, desistir. Porém, na maioria dos casos, "o feitiço vira contra o feiticeiro" e o arquivo passa a ter as suas entranhas cada vez mais remexidas e expostas.

O escritor faz com sua obra um trabalho de recalcamento, dissimulando, apagando, substituindo, sobrepondo, o que o geneticista, por sua vez, despudoradamente, tenta trazer à tona. Ao burilar seu texto, escrevendo, reescrevendo, corrigindo, o autor recalca a sua própria inspiração, que viera no primeiro jato de tinta sobre o papel, no primeiro lance de escrita, para deixar agir a sua consciência de artesão da palavra, procurando a melhor ou a mais adequada solução para este ou aquele trecho do seu texto, escondendo o que seu inconsciente deixou aflorar naquele primeiro lance de escrita. Nada disso, no entanto, escapa aos olhos da crítica genética que, segundo Regina Zilberman, "busca conhecer o escritor não pela produção editada, mas nas entrelinhas das notas marginais não publicadas" (MORGANTI, 1994: 417).

Quando se está trabalhando com documentos de arquivo, dar à luz determinados fatos ou obras, ou trechos de obras de um autor significa, de alguma forma, que se está recalcando outros. Trazer à tona marcas que o tempo se incumbiu de dissimular, marcas advindas de recalques anteriores, explícitos ou implícitos, ocasionados pelo autor ou pelos seus arcontes - pesquisadores, editores, no caso dos arquivos literários - são questões de reconhecida importância e que merecem sempre cuidadosa discussão.

O trabalho com arquivos traz, antes de tudo, a exigência do bom senso e da ética, pois um autor não é ou foi uma entidade. Ele é uma pessoa e, como tal, pressupõe-se, viveu em sociedade, teve família, amigos, pessoas de toda ordem que o rodeavam e conviviam com ele. Informações relativas a estas pessoas estarão certamente, latentes ou patentes, nos documentos arquivados. Visto que, como se disse, tudo interessa a um arquivo, aí estarão incluídos correspondências pessoais (íntimas muitas vezes), documentos oficiais, informações que para os que vêem de fora nada de indecoroso representam, para os diretamente implicados, no entanto, muito podem representar.

Assim, as discussões sobre a ética na gestão dos arquivos são sempre um ponto pacífico nos congressos e eventos que reúnem aqueles que se ocupam do trabalho arquivístico. Estas preocupações são ainda redobradas quando se trata de arquivos de escritores modernos, pois ou o próprio autor ainda é vivo ou familiares e pessoas muito próximas a ele o são (BORDINI, 1998).

É necessário que se pense sempre que nem tudo o que o acervo diz interessa, e nem tudo o que interessa pode ser dito.

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Por que trazer de volta à cena o poeta Arthur de Salles?

Soteropolitano, Arthur de Salles, que viveu entre 1879 e 1952, escreveu tanto em prosa quanto em verso, transitou entre o Parnasianismo e o Simbolismo e pode ser considerado um dos representantes da fase de transição pré-modernista. Membro da Academia de Letras da Bahia, Arthur de Salles ocupava a cadeira de nº 3.

Publicou em vida apenas 4 obras completas: Poesias, 1920; Sangue Máo, 1928; Poemas Regionais, 1948 e a tradução de Macbeth, de Shakespeare, com um ensaio que se constitui no Prefácio do volume 10 da coleção Clássicos Jackson. Sua "Obra Dispersa", no entanto, assume proporções bem maiores. Até o momento, o Grupo de Edição Crítica de Textos da UFBA, que se ocupa do Acervo do autor, pôde confirmar a publicação de 24 títulos em jornais e 85 títulos em revistas.

A importância de Arthur de Salles também pode ser constatada pelos resultados preliminares das pesquisas que tiveram por base a Fortuna Crítica do poeta (LOSE, 2001). Quando da sua morte, os jornais da capital e do interior do estado trouxeram cerca de 50 notícias, ao longo das quais estão contidos muitos textos de exaltação, consternação e apologia à vastíssima cultura do poeta.

Arthur de Salles foi um homem querido e um intelectual admirado. Foi, nos círculos artísticos, literários e sociais, pessoa das mais estimadas, quer pela formação intelectual que o distinguia, quer pela simplicidade de seus costumes. Todos o queriam e admiravam, considerando-o um mestre. Prova disso foi a grande comoção causada pela sua morte, desencadeando uma série de homenagens e solenidades em prol de sua memória, promovidas por diversas associações culturais e autoridades civis e militares. Seu enterro, que correu às expensas do Estado, "numa última homenagem àquele que tantos serviços prestou à nossa cultura", segundo afirmou o Diário da Bahia (2), foi acompanhado por grandes nomes da intelectualidade e da comunidade local.

Meio século passado, e Arthur de Salles continua a constar das antologias e coletâneas literárias nacionais e internacionais, como se pode verificar em História da literatura brasileira, de Massaud Moisés (1985: 264), na obra homônima de Luciana Stegagno Picchio, traduzida para o Brasil e publicada em 1997 (1997: 352), na obra organizada por Cassiana Lacerda Carolo, Decadismo e simbolismo no Brasil: crítica e poética, publicada em 1980 (CAROLLO, 1980); também na antologia, A Poesia baiana no século XX, organizada por Assis Brasil (1999), e em tantos outros trabalhos que se ocupam da literatura brasileira. Arthur de Salles consta ainda como verbete do Enciclopédia de Literatura Brasileira, de Afrânio Coutinho (2001), na qual são feitas 14 referências ao poeta.

Com freqüência, também, Arthur de Salles é lembrado e citado por intelectuais e artistas da sua terra natal em artigos e entrevistas. Aldamir da Cunha Miranda, em artigo publicado em maio de 2001, no jornal A Tarde, de Salvador, cujo título é "O poeta Artur de Sales" afirma que a lembrança de sua presença e a sua obra ficaram marcados na memória das gerações subseqüentes (MIRANDA, 2001: 3). Referência a ele também faz Caetano Veloso em uma entrevista concedida a revista Cult, em agosto de 2001, na qual cita um trecho, que conhece de cor, do poema "Lúcia" de Arthur de Salles, de quem, segundo ele, seu pai era grande admirador (ADRIANO & VOROBOW, 2001).

Foi Caetano Veloso também quem gravou o Hino do Senhor do Bonfim, cuja letra é de Arthur de Salles. O Hino é cantado pelo povo baiano todos os anos na Festa da Lavagem do Bonfim, em homenagem ao santo de maior devoção na Bahia. Sua popularidade é tanta que chega a ser executado, também, inúmeras vezes, pelos músicos dos trios elétricos no carnaval baiano.

O Arquivo que se mostra

Em vista da dimensão da obra deixada pelo poeta baiano, o Setor de Filologia Românica do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia empenhou-se em organizar a Coleção Arthur de Salles, o que foi feito em 1977. Desde então, o Grupo de Edição Crítica de Textos da UFBA vem se ocupando do resgate de informações sobre a vida e a obra do citado poeta. A Coleção Arthur de Salles se encontra arquivada, atualmente, em três diferentes acervos: o Acervo Hélio Simões, o da Academia de Letras da Bahia, e o do Setor de Filologia Românica do Instituto de Letras da UFBA. Este último, o mais relevante deles, por possuir documentos pertencentes à família do Poeta (GAMA & TELLES, 1994: 95).

Os documentos da Coleção que se encontram na UFBA foram divididos em categorias de acordo com as suas características extrínsecas e intrínsecas, constituindo-se de: manuscritos (autógrafos ou apógrafos, que ainda podem ser anotações ou esboços, rascunhos, borrões passados a limpo, texto definitivo e ainda o epistolário do autor); datiloscritos (com emendas autógrafas ou não) e impressos. Ainda compõem o acervo, exemplares de todas as teses, dissertações e trabalhos gerados pelo grupo de Edição Crítica da "Obra" de Arthur de Salles, além de elementos relativos à biografia do autor, fotografias, entrevistas realizadas com seus familiares e amigos, depoimentos e documentos pertencentes à sua fortuna crítica.

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O Arquivo que se esconde

Como boa parte dos arquivos literários, o de Arthur de Salles se mostra bastante completo. A maioria dos documentos pertencentes a ele já foram trabalhados de forma trivial: edições crítico-genéticas; trabalhos de fortuna crítica; a sociedade e a cultura baiana de sua época presentes na sua correspondência; elementos de sua criação literária também extraídos de sua correspondência, ou seja, trata-se indubitavelmente de um arquivo produtivo, em termos da memória literária de uma personalidade, de uma época e de uma região.

Há, porém, elementos diversos que estão presentes e se mostram de forma bastante evidente nos documentos do acervo. Elementos estes que nada dizem a respeito da produção literária e intelectual do poeta, pelo menos em um primeiro olhar, mas que deixam o pesquisador frente a um dilema. Pois, ao se deparar com uma situação diferente deve-se, em primeiro lugar, decodificar a informação e posteriormente processá-la. Desta forma, por exemplo, um furo provocado por uma bala de revólver em um móvel que faça parte de um acervo, a princípio, representa apenas um furo de bala, que pode, no entanto, ser o testemunho de um assassinato, um suicídio, ou um simples descuido. Pode ter, portanto, relação ou não com o que se procura: informações sobre a vida e a obra de um determinado autor, relacionados de alguma forma com o seu ofício.

O escritor Arthur de Salles, ele mesmo, foi o seu maior arconte, sofrendo, como era de se supor, do mal de arquivo e da pulsão de morte. Descuidado e altruísta, deixava que seus filhos utilizassem seus rascunhos para fazer deveres da escola, como nos prova um manuscrito pertencente ao seu Acervo que traz no verso da folha um soneto e no recto uma cópia de palavras erradas, possivelmente, em um ditado. Têm-se, então, informações sobre traços da personalidade do poeta através de um testemunho extrínseco, porém, não evidente.

Como não era uma pessoa de posses, muito pelo contrário, Arthur de Salles utilizava-se para escrever de qualquer apara de papel da mais baixa qualidade, o que também nos é confirmado por uma grande quantidade de manuscritos seus, pertencentes ao acervo. Têm-se informações sobre a condição social do poeta, em dados discretos de seu acervo.

Porém, o maior testemunho que os seus manuscritos nos dão é sobre o fato de ao final da vida o poeta ter tentado se desfazer de todos os seus originais, apagando os passos deixados atrás de si e toda a sua produção inédita, o que hoje constitui a parte mais substancial de seu acervo, sob a qual já se debruçaram, e ainda o fazem, diversos pesquisadores. Essa tragédia foi evitada pelos filhos do poeta que lançaram água sobre o fogo ateado. As cicatrizes de ambos os atos são visíveis nos seus manuscritos: os papéis ficaram marcados, de forma indelével, de fogo e de água, alguns chegando a perder boa parte.

Todas estas informações, e muitas mais, não estão escritas em lugar algum, mas deixaram seus traços no suporte desta memória.

A maior parte dos documentos que hoje constituem o Acervo de Arthur de Salles foi trazida pela filha do poeta, Dona Celina Salles Trigueiros, a qual entregou aos cuidados do Grupo de Edição Crítica de Textos da UFBA os documentos pertencentes ao poeta, aos quais ela singelamente tratava como "os papéis de papai". Foi através dos depoimentos dela e de outras pessoas que conviveram com Arthur de Salles que se conseguiu compreender muitas das informações contidas nos documentos do Acervo, que apesar de serem visíveis, não eram evidentes. Desta forma, as inferências foram corroboradas pelas informações.

Outra inestimável fonte de informações sobre o poeta são as cartas enviadas ao seu maior interlocutor, o também poeta Durval de Moraes. Era para o amigo que Arthur de Salles escrevia as suas mais demoradas cartas, era com ele que travava os mais longos e sinceros diálogos. Era ele o grande guardião dos seus segredos, seus anseios, seus momentos de brilhantismo e desespero. Durval, como um bom arconte, fez exatamente o oposto do que fez Arthur de Salles, guardou todas as missivas recebidas, e alguns rascunhos das enviadas ao amigo. Esta coleção passou às mãos de seu filho, que, por sua vez, passou fotocópias às mãos dos pesquisadores e organizadores do Acervo. O que ficou "perdido" pelo caminho, provavelmente, jamais se saberá.

O trabalho com o arquivo é um trabalho de memória, sobre a memória, como reconstituição da memória, e esta reconstituição faz-se com a junção de vários elementos e inferências, excluindo-se desse trabalho, no entanto, a subjetividade e a leviandade. Há casos em que não se pode ter hipóteses, é necessário haver fatos.

É memória, portanto, o poema escrito sobre o papel; é memória a marca em formato circular provocada evidentemente pela sobreposição da base de um copo úmido sobre a folha; é memória o comentário feito pelo escritor (como se imaginasse alguém a espreitar seu lapso) - "andei bebendo, como vistes" - e é memória a letra embaralhada, embriagada vinda logo após este comentário.

Uma única folha de papel é um documento para o filólogo, pois traz o esboço de uma poesia; é um documento para o geneticista, pois traz os movimentos iniciais da feitura da obra; e é um documento para o biógrafo, pois traz dados que, aliados a alguns outros d, representam informações sobre a vida do poeta. É, também, um documento para o historiador, pois retrata de alguma forma a sociedade contemporânea ao poeta.

Um fato impresso sobre um testemunho autoral diz respeito à biografia de seu autor, à história de sua sociedade, de sua criação literária, da cultura de sua época... marcas extrínsecas nos documentos - marcas de copo, marcas de fogo, marcas de água, marcas do tempo - são como as cicatrizes em um corpo: contam a sua história.

Considerações finais

Eximimo-nos de usar o termo conclusão por acreditar que o trabalho com acervos não tem conclusões. Os elementos estão todos ali, uns mais a mostra, outros menos, de tempos em tempos a estes se juntam outros, mas assim como um quebra-cabeças as peças vão se reunindo aos poucos, com a diferença que cada uma delas pode se agrupar com diversos elementos para formar novas figuras.

O poeta Arthur de Salles reunia em si toda a potência do mal de arquivo, sofrendo de extrema paixão por seu trabalho, e trabalhando para destruir de forma irrecuperável o seu arquivo. Deixou marcas e silêncios, pistas que vêm sendo seguidas pelos pesquisadores do Grupo de Edição Crítica de Textos da UFBA, contagiando a todos com o mal d'archive.

Notas

(1) Estes dois termos estão sendo usados aqui indistintamente, entendendo-se ambos como sinônimos.

(2) MORRE o maior poeta da Bahia (1952). Diário da Bahia, Salvador, 28 jun. p. 1 e 4.

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Referências

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BORDINI, Maria da Glória (1995). Manual de organização do acervo literário de Érico Verissimo. Cadernos do Centro de Pesquisas Literárias, v. 1, n. 1, Porto Alegre, jan. p. 5.

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MIRANDA, Adalmir da Cunha (2001). "O poeta Artur de Sales". A Tarde ( Caderno Cultural). Salvador, 19 maio de 2001.

MOISÉS, Massaud (1985). História da literatura brasileira: simbolismo. São Paulo, Cultrix/EDUSP.

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